No vasto mapa da literatura brasileira, Carlos Drummond de Andrade ocupa um lugar que dispensa apresentações longas, mas nunca reflexões rasas. Mineiro de Itabira, poeta do cotidiano, do impasse e da lucidez, Drummond construiu uma obra que atravessa o século XX como quem observa o mundo com ironia, afeto e um desconfiado senso de esperança. Sua poesia nunca foi escapista: ela encara o real, mas insiste em humanizá-lo. Talvez por isso continue tão necessária.
É nesse espírito que surge o poema “Receita de Ano Novo”, texto frequentemente lembrado nos momentos de virada, não por prometer milagres, mas por sugerir uma ética do recomeço.
Escrito já na maturidade do autor e publicado em um de seus livros mais reflexivos, o poema dialoga com a tradição das “receitas de fim de ano” apenas para subvertê-la. Não há fórmulas mágicas nem garantias. O que Drummond propõe é quase um exercício filosófico: olhar o tempo como matéria viva, aceitar a mudança, abrir espaço para o novo sem negar o que fomos. A linguagem é simples, direta, quase doméstica — e justamente por isso poderosa. Como toda boa poesia, ela parece fácil, mas permanece ecoando.
Nesta época do ano, reler esse poema é quase um gesto de resistência. Em tempos de pressa, ele pede pausa. Em tempos de cinismo, ele aposta na renovação. E faz isso sem gritar, sem prometer demais — apenas lembrando que a vida, apesar de tudo, ainda pode ser vivida de outro modo…

Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
“Receita de Ano Novo” é um poema de Carlos Drummond de Andrade publicado em 1977 no livro “Discursos de Primavera e Algumas Sombras”
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