Loucura | Por Voltaire em “Dicionário Filosófico”



Loucura

Por Voltaire

Não se trata de reeditar o livro de Erasmo, que na atualidade não seria mais do que um lugar comum bastante insípido.

Chamamos loucura a essas doenças dos órgãos do cérebro que impedem um homem de pensar e de agir como os outros. Não podendo gerir seus bens, é, interdito; não podendo ter ideias de acordo com a sociedade, é excluído, se for nocivo, é enclausurado; se for furioso, trancafiam-no.

É importante observar que esse homem, entretanto, não carece de ideias; ele as tem como todos os outros enquanto acordado e, frequentemente, enquanto dorme. Poder-se-á perguntar como sua alma espiritual, imortal, alojada em seu cérebro, recebendo todas as ideias por meio dos sentidos coordenados e divididos, não possa concluir um julgamento são. Ela vê os objetos como os viam na alma de Aristóteles e de Platão, de Locke e de Newton; ouve os mesmos sons, tem o mesmo sentido do tato: por que motivo, pois, recebendo percepções que os mais sábios experimentam, compõe um conjunto inevitavelmente extravagante?

Se essa substância simples e eterna possui para as suas ações os mesmos instrumentos das almas dos cérebros mais sábios, deve raciocinar como eles. Que o impediria? Claro que se um maluco vê vermelho e os sábios azul; se quando os sábios ouvem uma música o louco ouve o zurrar de um asno; se quando eles estão no sermão o louco julga estar na comédia; se quando eles ouvem sim ele entende não, então sua alma deve pensar ao contrário das outras. Mas o louco tem as mesmas percepções que eles; não há nenhuma razão aparente pela qual sua alma, tendo recebido mediante os sentidos todos os seus utensílios, não os possa usar. Ela é pura, dizemos; não está sujeita por si mesma a nenhuma enfermidade; ei-la provida de todos os recursos necessários; passe o que se passar em seu corpo, nada poderá mudar a sua essência; contudo, ei-la encerrada num manicômio.

Essa reflexão pode fazer supor que a faculdade de pensar, doada por Deus ao homem, esteja sujeita a desarranjos como os outros sentidos. Um louco é um doente cujo cérebro sofre, como o gotoso é um doente que sofre dos pés e das mãos; ele pensa com o cérebro, assim como anda com os pés, sem nada conhecer nem do seu poder incomparável de andar, nem do seu não menos incompreensível poder de pensar. Sofre-se a gota no cérebro como nos pés. Enfim, após mil reflexões, é preciso convir em que somente a fé, talvez, possa convencer-nos de que uma substância simples e imaterial seja passível de doença.

Os doutos ou os doutores dirão ao louco: “Meu amigo, não obstante teres perdido o senso comum, tua alma é tão espiritual, tão pura, tão imoral como a nossa; porém nossa alma está bem alojada e a tua o está mal; as janelas da casa estão fechadas para ela; falta-lhe ar, ela sufoca”. O maluco, em seus bons momentos, lhes responderia: “Meus amigos, pensais à vossa moda, o que é discutível. Minhas janelas estão tão abertas como as vossas, porquanto eu vejo os mesmos objetos e ouço as mesmas palavras: é, pois, necessário que, ou minha alma empregue mal os seus sentidos, ou seja, ela própria um sentido viciado, uma qualidade depravada. Numa palavra, ou minha alma é louca por sua própria conta ou eu não tenho alma”.

Um dos doutores poderá responder: “Meu irmão, Deus criou, é possível, almas loucas, assim como criou almas sábias”. O louco replicará: “Se eu fosse acreditar no que me dizeis, seria ainda mais louco do que já sou. Por obséquio, vós que sabeis tanto, dizei-me, por que sou louco? ”.

Se os doutores tiverem ainda um pouco de bom senso lhe responderão: “Ignoro-o absolutamente”. Eles não compreenderão por que um cérebro tem ideias incoerentes; não compreenderão melhor por que outro cérebro tem ideias regulares e coerentes. Julgar-se-ão sábios, e serão tão loucos como ele.


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